As janelas batiam com o vento, que invadia a casa semi abandonada com
velocidade, e saia logo em seguida. Lá fora, as árvores dançavam, e no pequeno quarto sem
móveis, estava lá, parado, apenas desfrutando das sensações do momento. Sem
pensamentos na cabeça, apenas olhava os pássaros indo e vindo, seus trapos que vestia
serem dobrados pelo vento, os cabelos longos que se jogavam de um lado para o outro, as
árvores, as ondas se quebrarem na praia e as nuvens negras que anunciavam a tempestade
que estava por vir.
Daniel não prestou atenção quando outra pessoa entrou no quarto. Era uma mulher,
cabelos castanhos caracolados, e desenho fino e delicado. Vestia um sobretudo branco de
couro. Ela olhou para Daniel com pesar, e por a mão em seu ombro:
- Você está pronto?
- E alguém um dia vai estar?
Realmente, aquele não era o tipo de situação que se pode se preparar. Daniel saiu de
seu estado imóvel, olhou fundo nos olhos negros da mulher, e desejou não ter feito aquilo.
Mesmo sem saber sobre seu destino, ele viu em seus olhos que era pior do que pensava.
Então, soltou um urro de desespero, e caiu de joelhos. A mulher olhou boquiaberta, e o
ajudou a se levantar:
- Você sabe o que fez?
- Não sei.
- É uma pena que tenhamos que nos separar desse jeito...
E sem dizer nada, ele se virou e saiu pela porta do quarto, descendo por escadas de
madeira em ruína, até chegar ao jardim. Um jardim sombrio e sem vida, com flores secas
ou mortas e estatuetas de duendes. Olhou pra trás e viu a casa que lhe servira de esconderijo
durante todos esses longos anos. E viu pela janela, Layla, a mulher que chorava:
- Desculpe-me, amor, mas eu preciso fazer isso... – murmurou para si mesmo.
Layla ficou sem reação, ao ver que Daniel corria mais e mais rápido em direção ao
mar. Ela desceu as pressas, mas não conseguiu alcançá-lo. Ele corria por cima das águas,
em direção a uma luz intensa. Ela sabia o que era, e não teve tempo de se despedir. Apenas
ficou ali na praia, enquanto via os trovões golpearem a terra e o mar, e o homem que amava
era absorvido pela luz. E, quando virou de costas para ir embora, um trovão lhe trouxe a
mensagem “Um dia nos veremos novamente”.
Daniel via as luzes que giravam e piscavam, e sabia o que elas eram. Os anjos iriam
julgá-lo agora, e mesmo sem saber qual era seu crime, ele esperou paciente, mas não
conseguiu segurar as lágrimas que a memória de Layla lhe trazia. Enquanto seus olhos iam
ficando vermelhos, pode ver uma luz mais intensa que fez o mesmo efeito do sol nascente
perante as outras estrelas. Não sabia quem era, mas temia mesmo assim:
- VOCÊ É UM TRAIDOR, DANIEL! – e a voz rompeu o silencio como um
trovão.
Daniel ficou sem expressão, e o temor lhe fez o sangue gelar. Não tinha mais
lagrimas para chorar, e sentiu seus olhos queimando. Fechou-os, por causa de toda aquela luz. Caiu de joelhos, e rogou para que alguém intercedesse por ele, mas sabia que era em
vão. “Não existem anjos para anjos”.
O silêncio e escuridão reinavam na mente de Daniel, e parecia estar sozinho, mais
do que quando se escondia na casa abandonada da praia. Quando abriu os olhos, não havia
mais luz. Via o céu azul, com suas nuvens brancas, e uma delas, em forma de trono,
abrigava uma figura que era como homem, mas tinha cabeça de leão, e em sua mão
esquerda, uma balança, e na direita, o Livro das Revelações. Tinha três pares de asas que
eram brancas como nenhuma nuvem jamais foi, e vestia um manto que se confundia com o
céu em suas cores.
Do lado esquerdo estava um homem com cabeça de águia, e segurava uma espada
em chamas e o escudo de Deus. Vestia uma couraça que brilhava como o sol. Do lado
direito, viu uma criança com as mãos e pés sangrando que oferecia incenso e orações ao
primeiro deles, e quando o homem com cabeça de leão abriu a boca para falar, o céu
escureceu e sete trovões romperam em todas as direções, e através deles Daniel ouviu sua
sentença:
- Serás excomungado.
Daniel fechou os olhos. E quando os abriu novamente, não via mais nada. Era uma
escuridão cruel, e sentia malícia no silêncio. Sentia que estava caindo, e quando tentou
forçar-se a subir, não havia mais asas. Fechou os olhos e tapou os ouvidos com a mão, na
esperança de que a crueldade e malícia da escuridão e silêncio não o envolvesse. Tentou
rezar, mas não sentiu a presença Dele, e nessa hora, sentiu sua alma sendo dilacerada por
mil garras e dentes.
Não tinha certeza de quanto tempo se passou até que não sentiu mais a queda. Abriu
os olhos e se viu nu, em um mar de sangue. Nadou até a superfície, e sentiu que levou o
mesmo tempo da queda. E quando levantou a mão pra fora do mar e sentiu o ar, sentiu
também uma mão que agarrou a sua, e o levantou para fora.
De pé em cima daquele mar de sangue, estava a criatura mais bela de toda a criação.
Seu rosto resplandecia a adoração que um dia teve, e seu corpo nu era impecável. Tinha um
grande par de asas de fogo, que não emanava calor. Ele pos Daniel de pé em cima do
sangue e o abraçou. Daniel, confuso pelo momento, apenas deixou-se ser abraçado. O anjo
de fogo o soltou, e o encorajou a caminhar pelo mar de sangue.
- Bem vindo, irmão. Qual é o seu crime?
- Não sei...
- Então me deixe dizer que aqui, ninguém é culpado. O único culpado é Deus pela
desolação dessas almas.
Daniel ficou calado com aquelas palavras. Agora conseguia raciocinar, e sabia onde
estava e com quem falava. E seu coração tremeu. Seu corpo inteiro tremeu, e quase caiu, se
não fosse por aquele que o segurava.
- Não tenha medo. Eu nunca iria abandonar um irmão, ao contrário Dele – e
apontou para cima.
- Mas eu não devia estar aqui... Nem mesmo conversando com você!
- Deixa eu te contar um segredo... A maioria de nós também não deveria estar
aqui. Mas não há como mudar isso. – falava com uma tristeza que contrastava com todo o
resto do corpo - Você pode passar o resto da eternidade nesse mar do seu próprio sangue,
ou pode vir comigo para lá – e apontou para o horizonte.
Daniel não estava gostando da idéia, mas quando pode ver melhor, ficou de boca
aberta. Coçou os olhos para ter certeza de que eles não o enganavam, mas imagem ficava cada vez mais nítida. Um castelo, que em sua largura tomava todo o horizonte, e em altura
ia até onde a visão alcançava. E era dourado e branco, e todos os detalhes feitos com
precisão, desde as gárgulas até as cruzes que estavam no alto de várias torres. Nem mesmo
o glorioso Júpiter, nas poucas vezes que estave lá, poderia se comparar àquele.
Daniel parou e pensou. Sentiu-se sozinho por um momento, e lembrou daquilo que
lhe tinham falado sobre como o demônio era astuto. Mas não tinha como negar que ele
também fora excomungado. Não havia outro lugar para ir, então por que não abraçar essa
oportunidade? Afinal, se estava no Inferno, é porque merecia.
- Não... Você está enganado. Ninguém aqui merece estar aqui, e é por isso que
nós lutamos.
E mesmo com os anos de treino para ocultar seus pensamentos, ele pode lê-los
como se fosse um livro aberto. “Não há mais segredos”. E realmente não havia. Mas
mesmo assim, o conflito da sua razão o consumia, porque não via crimes em suas
lembranças.
- Sabe... Você é bom demais para eles. Por isso está aqui comigo. Vou lhe contar
um segredo. O último do dia... E talvez da sua vida... Não existem leis!
- Como assim?
- Não existem leis! Não é o máximo? Ele nunca fez lei alguma! Quem fez as leis
foi aquele... – e nesse momento, o mar de sangue ferveu, e as asas de fogo se tornaram tão
grandes que faziam o homem sumir no meio delas – Foi Cristo, foi ele quem fez as leis! –
ele gritou com uma voz de extrema perversidade – Ou você realmente achava que Ele não
nos daria o livre arbítrio também?
E enquanto o mar se acalmava de novo, as palavras dele fizeram Daniel pensar.
Porque, por mais que não quisesse admitir, faziam sentido. E quando finalmente chegaram
na praia, Daniel viu o que realmente lhe aguardava. Uma infinidade de almas. Uma
infinidade de condenados. Estavam todos parados, em sentido, olhando para os dois, como
quem espera ordens. O anjo de fogo pos a mão no ombro de Daniel:
- Eles são seus.
- O que quer dizer?
- São seus, para fazer o que quiser. Servirão-lhe com maior lealdade do que
qualquer legião angelical o faria.
O rosto de Daniel ficou tencionado, e na sua expressão podia-se ver o ódio que tinha
daqueles que o abandonaram. Ele olhou para a infinita legião a sua frente, e com ar austero
e resoluto, bradou:
- Ajoelhem-se perante seu senhor, pois agora eu sou o anjo caído! E não haverá
justiça que não a da espada, e não haverá honra que não a da espada, e não haverá morte
que não a da espada!
Asas Negras
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